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Jovens se preparam para ser os primeiros surdos a virarem mestres na UnB

Surdos que falam - 18/04/2009 21:17 | ÚLTIMA ATUALIZAÇÃO EM 18/04/2009 21:17





Numa sala de aula do Departamento de Línguas da Universidade de Brasília (UnB), três jovens — dois rapazes e uma moça — se preparam para virar mestre. Gláucio Castro, de 22 anos, é formado em biologia. Os outros dois — Messias Ramos Costa, 30, e Marisa Dias, 24 — são pedagogos. Estão cheios de planos. Questionam, indagam, pesquisam. Pensam agora na dissertação que terão que apresentar ao fim do curso. Gláucio mora na Asa Norte. Messias, em Ceilândia. Marisa, desde março, viaja seis horas de ônibus, duas vezes por semana, para chegar a Brasília. Patos de Minas (MG), onde vive, ficou pequena demais pra ela e os seus sonhos.

E os três se juntam. Estão à espera da professora Enilde Faulstich, maranhense de 60 anos, doutora em linguística, mulher forte, fala decidida, conhecimento apurado. Chefe do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas (LIP) da universidade, Enilde vive um momento marcante na sua vida profissional. Diante dela, um gestual forte entre os alunos mestrandos. É assim que se comunicam. É a língua que falam. Gláucio, Messias e Marisa são surdos. E uma ressalva: são apenas surdos. Surdos que falam. Portanto, não são mudos. Chamá-los de surdos-mudos é um equívoco. Eles falam Libras. Submeteram-se a provas difíceis para conseguir uma vaga. Os três são os primeiros surdos a entrarem no mestrado da UnB. Dividem a turma com outros três colegas ouvintes. Em dois anos, serão mestres em linguística.


Isso é uma revolução. “A UnB está cumprindo a Lei 5.626, do Ministério da Educação, de 27 de março de 2005, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de Libras nos cursos de licenciatura de letras e pedagogia das universidades públicas de todo o país”, explica a chefe do departamento. E comemora: “Eles serão os nossos primeiros mestres surdos. As pessoas precisam saber disso”. Enilde tem razão. E alerta: “A própria UnB precisa saber que os estudantes surdos, tanto na graduação como na pós, fazem parte da academia. Precisam, portanto, ocupar todos os seus espaços”.

Luta diáriaOuvir as histórias dos três alunos é entender o sentido de superação. Com a ajuda da intérprete Fabiane Pagy, de 27 anos, estudante de letras da UnB (especialização em Libras), o Correio conversou com os mestrandos. Messias, dos três, foi o que mais teve dificuldade para se “encaixar” no mundo dos que escutam. “Nasci ouvinte, mas aos 4 anos tive meningite”, ele diz. Como sequela, a surdez irreversível.

Os pais, em casa, lutaram para que ele fosse alfabetizado. O menino passou a ser oralizado (entender o que as pessoas falavam observando com o gestual da boca). Mas tudo era muito complicado. Se a pessoa estivesse de costas, por exemplo, a comunicação não se estabelecia. Na sala de aula, era comum acontecer isso. “O professor de educação física tinha bigode. Eu não entendia nada do que ele falava”, lembra.

Aos 12 anos, pela primeira vez, Messias viu um grupo de adultos surdos falando em Libras. “Aí, eu pensei: ‘eu também tenho o direito de falar assim’. Mas meus pais não aceitavam. Sofri muito com o oralismo. Não me comunicava nem dentro nem fora de casa. Me isolei das pessoas. Me sentia sozinho, distante e discriminado”, conta. Messias cursou o magistério. Na escola, conheceu outros surdos que falavam libras. Aos 21 anos, finalmente, ele começou a usar a língua a que tinha direito. O surdo que não falava aprendeu a falar. Reinventou a vida.

Messias descobriu o mundo. “Ignorei tudo que tinha acontecido no passado. Fico até emocionado com o que consegui até hoje”, diz, comovido. Fez faculdade de pedagogia. Depois, pós-graduação em libras. Tornou-se diretor da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos. Chegou ao mestrado na UnB.

Filha de pais analfabetos e surdos, Marisa percebeu em casa que seu mundo era diferente. Tios e a irmã também são surdos. “Só o cachorro era ouvinte”, ela diz, rindo. Em casa, comunicava-se com a família em Libras. Na escola, sem ajuda de fonoaudiólogo, desenvolveu a oralização. Não havia ali ninguém que falasse sua língua. Sozinha, aprendeu a “falar” português.

Marisa agarrou-se a todas as oportunidades. Formou-se em pedagogia. Hoje, trabalha numa instituição filantrópica para crianças e jovens surdos, em Patos de Minas. Também é orientadora de professoras de escolas públicas. “É a minha vida, o que sou capaz de fazer”, reflete. Ela só não gosta que lhe chamem de “mudinha”. “Eu falo Libras”, ensina. E conta um episódio que lhe aconteceu quando passeava com o afilhado, também surdo: “Uma mulher me olhou e disse: ‘tadinha’. Aí, perguntou o nome do meu afilhado. Ele respondeu (fazendo o gestual em Libras) que se chamava Felipe. Ela não entendeu. Aí, foi a nossa vez de dizer: ‘tadinha’’’. Marisa ensinou àquela mulher que ninguém merecia pena.

Primeiro pesquisadorCom um ano e meio de idade, Gláucio teve uma grave hepatite. A consequência imediata foi a surdez. Mãe pedagoga, lá em Uberlândia (MG), ela decidiu que o filho seria normal. E feliz. “Tive estimulação precoce. Meus pais me alfabetizaram em casa. Mas quando fui à escola, para fazer a primeira série, senti dificuldade. Não acompanhava as aulas oralizadas. Minha mãe propôs um trabalho em equipe”, conta.

Ainda assim, as dificuldades continuaram. “Me sentia discriminado. Foi quando me recolhi e passei a ler muito”, ele lembra. Aos 12 anos, com a mãe, Gláucio teve o primeiro contato com a línguas dos sinais. “Participei de um curso com a comunidade surda da cidade. Me identifiquei muito com eles”, diz. Aos 12 anos, ele, que havia aprendido a falar com fonoaudióloga, passou a se comunicar cada vez mais com o gestual.

Mas o preconceito estava em todas as partes. Até na faculdade de biologia. “Os professores não acrescentavam nada. Os documentários sequer tinham legenda”, conta. Quando fazia letras-libras, na UnB, um professor orientador duvidou que ele tivesse escrito um projeto, de tão bem feito. “Mudei de orientador”, decidiu.

Gláucio transformou indiferença em luta. Aos 22 anos, tornou-se professor de biologia da Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos (Apada) e professor de Libras, no Centro de Apoio ao Surdo, em Brasília. Acabou por aí? Não. O mestrando é professor-tutor do curso de letras-libras licenciatura, da UnB. A professora Enilde elogia o aluno mestrando: “Ele é o único pesquisador surdo do programa de iniciação científica da universidade”.

Convencida de que o caminho é esse, a doutora Enilde ressalta: “Isso é o resultado de uma mudança de visão da UnB, seu papel social, sem preconceitos. É a integração de minorias no espaço acadêmico. Chegou a hora de desmarginalizar quem está marginalizado por não dominar a língua da maioria”. Ela, que dá aulas com ajuda de uma intérprete, garante, com sorriso bom: “Já sei dizer bom-dia, boa-tarde e boa-noite”.

No Centro de Estudos Léxicos e Terminológicos da UnB está acontecendo uma verdadeira revolução. Não feita de arma. Tem gestos rápidos, mãos inquietas, expressões nos rostos, vibração de sentidos. O corpo fala em sinais. Novos horizontes. Um mundo pela frente. Depois do mestrado? O doutorado é o próximo passo. Uma professora acreditou que podia dar certo. Eles, os futuros mestres surdos, tinham certeza. Que venham mais turmas. Que se contem mais histórias como essas.


PARA SABER MAIS

Língua completa


Libras é a sigla da Língua Brasileira de Sinais, que tem origem na Língua de Sinais Francesa. As Línguas de Sinais (LS) são naturais das comunidades surdas. Não são universais. Cada país possui a sua própria, que sofre as influências da cultura. Como qualquer outra, também possui expressões que diferem de região para região (regionalismos). Isso a legitima ainda mais como língua. Ao contrário do que muitos imaginam, as Línguas de Sinais não são simplesmente mímicas e gestos soltos, utilizados pelos surdos para facilitar a comunicação. São estruturas gramaticais próprias, compostas pelos níveis linguísticos: o fonológico, o morfológico, o sintático e o semântico.


Fonte: Correiobraziliense

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